uma entrevista com luiz chagas
publicada na CHEIA, durante a pandemia, por júlia rocha, rodrigo lobo e gustavo galo.
consertar os vasos que se quebram, aproveitar os cacos e, incorporando os de volta com a ajuda de outras matérias, é um tipo de arte japonesa chamada “kintsugi”. descobri o nome dessa arte lendo o blog do bráulio tavares. um dos meus melhores momentos do dia, lírio no colo enquanto o embalo sobre a bola de pilates, é ler algum dos centenas (talvez milhar já) de curtos ensaios do seu “mundo fantasmo”. “as rachaduras não podem ser escondidas, pois o barro cozido e endurecido não pode ser moldado. o que fazem os artesãos? eles preenchem as rachaduras com outros materiais, até mesmo com ouro, tornando-as ainda mais visíveis”.
ontem voltei do velório e do enterro do meu querido amigo, luiz chagas. o que presenciei ali foi uma espécie de concerto de consertos. ficarão as marcas dessa perda, da despedida de um pai, um amigo, um artista singular. mas as marcas, visíveis, deixarão o belo (apelido de luiz chagas) sempre presente. foi emocionante para mim estar ali, apesar de tudo que pesa, na despedida calorosa que contou com muita música e lembranças alegres. um gurufim foi o que aconteceu.
na volta para a mantiqueira, quase meia noite, já na sp-50 (depois de um táxi, metrô, um ônibus via dutra, um uber rural) rumo ao bairro do souza, lembrei de uma entrevista que fizemos, júlia, rodrigo lobo e eu, durante a pandemia, com o guitarrista do isca de polícia, o compositor de trilha para cinema, o compositor, tradutor, os muitos, geminiano que era, chaguetes. deixo a uma parte dela de presente para vocês (quem quiser ler na íntegra o endereço é esse aqui ó).
entrevista com luiz chagas (setembro de 2020)
música de apartamento (MdA), o nome do seu recente show, anunciava o futuro?
MdA, na verdade, é o nome do meu futuro show que denuncia o passado, o imemorial e o recente. Falando sério, o nome foi escolhido para celebrar e exorcizar a vida aparentemente solitária do músico sozinho tocando, tocando como se houvesse manhã. De repente, com a pandemia, isso virou o novo normal. Mas a solidão da moderna criança urbana é anterior a tudo isso.
belo, como foi a sua entrada, nos anos 1980, como tradutor na brasiliense?
Eu tinha saído da Banda Isca e estava precisando de emprego. Vi um anúncio em que a editora procurava tradutores para sua coleção contemporânea. Me chamou a atenção que ao invés de pedir currículo ela pedia uma autobiografia, o que para mim era mais confortável – e oportuno - uma vez que meu histórico profissional não incluía “tradutor”. Na época a Brasiliense ainda estava na rua General Jardim e nem repondi por carta. Fui lá e conheci o Luis Schwarcz, na época diretor editorial ou algo assim, que me foi muito simpático.
você traduziu a autobiografia de billie holiday lady sings the blues e o 13 do pete towshend. encomendaram a você essas traduções por seu trabalho como artista?
Como disse, o anúncio era específico, falava em contemporaneidade e não em experiência. Quando eles leram “músico da banda de Itamar Assumpção”, piraram, estava na moda. Me deram Charles Bukowski de cara. Comecei com “Misto Quente”, a versão dele para “O Apanhador no campo de Centeio”. Em seguida veio um policial, “O Instituto”, do James M. Cain, de “O Destino Bate à sua Porta” – escreveram meu nome errado na capa, Luiz D. Chagas. Interrompi essa tradução para fazer o “Lady...” Isso aconteceu algumas vezes porque eu também era copydesk, que é um revisor-redator. Fiz isso entre outros para a tradução de Paulo Leminski de “Pergunte ao Pó”, de John Fante, a de Paulo Henriques Brito para “Big Sur”, de Jack Kerouac e a de Eduardo Bueno para “Viajante Solitário”, também de Kerouac. Nesse período entrevistei Leminski sobre o livro para o programa Leitura Livre da TV Cultura, junto com o Marcelo Paiva. Foi nesse dia que conheci a Alice Ruiz.
quais livros mais você traduziu? você chegou a conhecer o timothy leary. como foi esse encontro?
Para a Brasiliense foram Misto Quente (1984), Lady Sings the Blues (1985), O Instituto (1985), 13 (1987), Flashbacks Lsd: a Experiência Que Abalou o Sistema (1989), autobiografia de Timothy Leary, e Como a Própria Vida (1991), de Paco Ignacio Taibo II. Para a Editora Cultura Startup – uma aventura no vale do silício (1998), de Jerry Kaplan. Traduzi Forgive Me Killer, do Harry Whittington para a Editora Paulicéia, responsável pelo Cole Porter: Canções Versões, do Carlos Rennó. Roberto Perosa, o dono da Paulicéia que teve de fechar antes de publicar o livro que traduzi, era um fanático por policiais. Whittington é conhecido como o “rei do pulp”, escreveu mais de 200 paperbacks (paperback são livros de edições mais baratas, e ele escreveu 2090 valendo-se de mais de 20 pseudônimos). Foi Perosa quem me apresentou James Ellroy, cuja obra pretendia traduzir pessoalmente. A Paulicéia fechou em 1991 ou 1992. No mesmo período comecei a entrevistar pessoas para escrever um livro que sairia pela 34 da Bia Bracher, uma coleção patrocinada pelo Pão de Açúcar. Quando este saiu do acordo (era Collor), a coleção foi cancelada mas eu guardo até hoje as sementes de “Ouvidos atentos! A premeditação, os rumos e o sabor de veneno da Vanguarda Paulista!”. Além desses, traduzi dois títulos para a coleção Sabrina, da Abril. Um se chamava Sozinha no mundo, mas tem inúmeros homônimos. Essa aventura foi péssima para mim. Explico. O citado Schwarcz me deu A virgem e o cigano, de D. H. Lawrence, para apreciar e eu, irresponsavelmente, disse que parecia um livreto da coleção Sabrina. Devo tê-lo horrorizado, D.H. é um clássico. Mas a Sabrina estabeleceu um padrão (estou falando em centenas, talvez milhares, de livrinhos) que era: mocinha belíssima, descolada, mas pobre, conhece herdeiro, meio playboy, queixo quadrado escuro, de barba, meio cafajeste. Os dois acabam transando lá pelo terceiro capítulo e o livro inteiro é choro e ranger de dentes até que no penúltimo capítulo alguma verdade oculta vem à tona e os dois reatam para se casar no último. Meio o que acontece com a tal virgem e o tal cigano. Foi apenas uma observação sarcástica mas acho que não caiu bem. Tive melhor sorte com o Caio Graco Prado, o herdeiro da Brasiliense. 13, do Townshend, tinha como título original Horse’s Neck, que é o nome de um coquetel, originalmente não alcoólico, assim como de um selo de aguardente da marca Cavalinho, do interior paulista. Eu havia comprado uma garrafa na Angélica e fui para a editora onde a dividi com o Caio, enquanto decidíamos a capa e o título do livro. Em 1992, ou seja, três anos após a minha tradução, Timothy Leary viria ao Brasil. Eu não estava acompanhando isso mas um amigo meu, Apoenan Rodrigues, iria cobrir sua palestra sobre Inteligência Artificial no Maksoud Plaza para o Jornal do Brasil e insistiu com a publicação para que eu fosse convidado. Leary era uma peça. Sua palestra foi hilária. Ele exibiu uns mini documentários sobre o assunto e ao final ficava investigando a plateia: “o que vocês acham disso? Eu quero ouvir vocês!” Se eu tivesse pago pela palestra ia ficar muito bravo. Mas o fato é que ele queria voltar para a suíte dele. No meio do caminho o Apoenan o conseguiu deter e ficamos eu, Leary e a diretora da Cultura Inglesa, entidade que o havia convidado, conversando. Logo eu e a mulher, uma senhora, pedimos seu autógrafo. Leary, emocionado ao saber que eu era seu tradutor, pediu meu autógrafo também. Assinei, ele assinou e, todo galante, devolveu o meu crachá e deu o seu livro para a senhora. Virou as costas e sumiu escada rolante acima. Olhei para meu crachá e li “Wonderful translation! Timothy Leary”. Olhei para a mulher e ela gemia para sua acompanhante, “quem é Luiz Chagas?” Eu e o Apoenan sumimos rapidinho mas tive a impressão de ouvir uma risada ianque ressoar pelo hall gigantesco do Maksoud. O fato é que a mulher dele, Barbara, nesse dia, resolveu juntar os trapinhos com o milionário paulista Kim Esteves e Leary voltou sozinho para os Estados Unidos. Sem o meu autógrafo.
nessa época qual era o seu trabalho musical?
[Trilhas] Filmes.
1988 Presença de Marisa
1987 Quincas Borba
1987 Anjos do Arrabalde
1986 Filme Demência
1984 A Luta Pelo Sexo
1983 Doce Delírio
1983 Mulher Natureza
1982 O Castelo das Taras
1981 A Noite das Depravadas
1980 Colegiais e Lições de Sexo
1978 O Estripador de Mulheres
Música
1980-81 Trio Elétrico Pipoca Moderna – com a Banda de Pífaros de Caruaru
1981-83 Banda Isca de Polícia
1984-87 Revista Contigo
1988-90 Os Vitors e Banda Isca
é possível relacionar o trabalho com texto e a guitarra? tocar pode ser também uma maneira de escrever algo?
Na banda do Itamar havia piano, o Luis Lopes. Foi ele quem me convidou. Seu substituto era o Feliz Wagner, alemão, namorado da Suzana, que tocava na Divina Increnca, trio de jazz com Azael Rodrigues e Rodolfo Stroeter. Ele improvisava compulsivamente como o Keith Jarrett. Perguntei no que ele pensava e ele me disse que estava falando. Conseguia, àquela altura, “falar” por 30 minutos e queria ter mais assunto. Uma vez falei para a Guitar Player brasileira que “tocar era como pintar quadros”. Na verdade eu estava me referindo às explosões de cores que eu via na minha fase de psicodelia química. Algo mais ligado a rock. Quanto mais acústico é o trabalho, mais ele se aproxima da natureza. Uma sinfônica é um fim de tarde ouvindo o mar. De vez em quando eu falo, mas a maior parte do tempo é uma coisa pictórica, meio Pollock mas não necessariamente abstrata. De qualquer forma é um discurso, assim como uma interpretação, um cover, é uma tradução. Um arranjo é uma espécie de um copydesk e por aí vai. O Jeff Beck é sharp. Alguns textos são joãogilbertianos, outros dukeellington, cyropereira, determinadas sequências de notas te fazem rir ou chorar, varia. Isso é muito pessoal, há quem veja números e relações. Geometria, seguramente. Lógica e ousadia.
na live que você fez com a tulipa alguns espectadores reivindicaram um livro de memórias suas, uma biografia. você se interessaria por essa escrita?
Faço isso o tempo todo. E as pessoas pedem isso para todo mundo. É como se não soubéssemos que todo mundo tem e teve uma vida e que isso significa uma maneira de lidar com o que nos acontece e é isso que nos torna especiais e únicos. O grande barato é que as pessoas vivem com intensidade. Tanta intensidade que você não vê o que acontece do seu lado. Ou seja, um livro de memórias is pointless. Estou tentando e estou escrevendo um livro sobre alguma coisa que eu não sei bem o que é mas é sobre o interesse. Algo assim. A pulsão. A vida. A natureza dos escorpiões.
p.s. belo, querido, valeu!