dia desses encontrei meus amigos tatá aeroplano e juliano gauche. foi logo no primeiro poema de a volta à noite em cinquenta canções, livro da juliana magalhães. bateu um lance forte, uma saudade da época em que andávamos juntos, em são paulo, madrugada adentro arrumando boas tretas. terminávamos quase sempre abrigados, no segundo andar do sujinho, pelo garçom zen seu almeida.
o livro da juliana foi uma das edições mais surpreendentes que li este ano, uma espécie de playlist (bem melhor do que tento esboçar aqui) de poemas (50!) relacionados a versos-hit de canções que a marcaram (muitos também tatuados na minha memória sentimental), de roberto carlos, passando por milton nascimento até ian curtis, fiona apple... um dos textos, “as flores do jardim na nossa casa”, por exemplo: “quando roberto carlos diz/ as flores no jardim da nossa casa/ morreram todas de saudade de você/ ele diz me desculpe mas esqueci de regar as plantas/ por dois meses”. ou dois dos que mais gosto, o primeiro sobre “love will tear us apart ( ian curtis)”, com "o amor vai inchar o seu cérebro/ desmanchar a terra que sustenta/o seu pequeno corpo/ com choques elétricos/ até que você queira morrer/ outra vez/ e levante de novo/ pronto para a próxima”; o segundo, para “baby”, de caetano veloso, que vislumbra, bem humorado, “anúncio/ vaga clt sem nenhum benefício/ vale alimentação de dois reais/ você precisa aprender inglês/ precisa aprender o que eu sei/ e o que eu não sei mais”.
logo de saída, juliana ao comentar “em nome de deus”, de sérgio sampaio (1947-1994), juntou nós três, tatá, gauche e eu no seu texto. conheci o juliano cantando um disco todo dedicado ao compositor capixaba (nascido na mesma cidade que o “rei” roberto, para quem dedicou “meu pobre blues”). quando ouvi gauche, foi tatá quem me apresentou, fiquei muito emocionado. chorei algumas vezes ouvindo hoje não. foi sampaio mesmo quem nos reuniu como trio (não sei como juliana ficou sabendo!). em 2012, inclusive, cantamos algumas vezes, em diversos palcos, o disco completo eu quero é botar meu bloco na rua.
não vejo juliano faz tempo, alguns anos já, mas penso e lembro dele com frequência. mas, o tatá, encontro. na terça o reencontrarei, justamente, para cantar algumas das obras do “filho de um sampai teimoso”, na livraria megafauna, lançamento do livro faça um samba enquanto o bicho não vem: poemas para sérgio sampaio. o lançamento da edição, organizada por leonardo gandolfi e jhenifer silva, publicado pela telaranha, a partir de textos feitos por variados artistas, contará com pequenas apresentações, entre elas, a imperdível cida moreira (e mais caetano romão, caco pontes…). ainda não sei o que júlia rocha e eu vamos cantar (participamos juntos no livro), possivelmente “que loucura”, homenagem de sérgio a torquato neto e, provavelmente, “cada lugar na sua coisa”, faixa que inspirou nosso trampo na publicação, uma poesia ambulante pela serra da mantiqueira, em janeiro deste ano.
as duas músicas são lindíssimas. nelas sampaio, em outras palavras (como faz juliana), quer sair fora explodindo tudo e curtir o trânsito entre as linguagens mais distintas. na primeira, cantou: “saí do palco e fui pra plateia/ saí da sala e fui pro porão”. enquanto na segunda, “um livro de poesia na gaveta/ não adianta nada/ lugar de poesia é na calçada…”. caco, poeta amigo de muitas viagens, também me convidou para experimentar algo da lavra do “velho bandido”, o zebedeu, na noite de terça (começa às 19hs).
sampaio, dos mais expostos e corajosos cancionistas que já ouvi. ele que cantou estes versos, ainda no governo médici, em 1973, ditadura civil militar, “hoje está passando um filme de terror/ na sessão das dez um filme de terror/ tenho os olhos muito atentos/ e os ouvidos bem abertos” (“filme de terror”) e “a barra está pesada pode aliviar/ ou não/ não me chame pra beber seu veneno…” (“não tenha medo não”). ele que, na década seguinte, ainda em 82, arredio ao mercado e às gravadoras, antenado ao que viria acontecer, declarava: “não há nada mais bonito do que ser independente” e com “homem de trinta”, pensando na passagem do tempo e nos excessos, arrepiava “tenho almoçado e jantado/ tenho tomado café da manhã/ barra pesada não muito obrigado…”, morreria de pancreatite em 1994, deixando obras inéditas e algumas pistas.
faça um samba enquanto o bicho não vem: poemas para sérgio sampaio é um encontro e tanto. conversei com leonardo e jhenifer, responsáveis pelo livro.
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poetas, no brasil, ainda mais depois dos anos 60, também são cancionistas. sampaio, leitor do torquato, compôs “que loucura”. é possível falar em discos de poemas, como os de sampaio e tantas outras pessoas artistas, por conta da proximidade com os textos de poetas. com que poetas de “livro” vocês veem relação com sua obra ?
jhenifer:
concordo totalmente. e isso se dá de muitos jeitos, né? talvez caetano seja o exemplo mais conhecido, lembrei dele falando em alguma entrevista sobre ser um poeta frustrado, algo do tipo (como se não fosse poeta, rs). o fato é que ele é um grande leitor de poetas, tanta coisa dos irmãos campos no cancioneiro dele, de maneira direta ou via tradução (lembrei de “elegia”, poema de john donne traduzido por augusto, musicado por péricles cavalcanti, mas exemplos não faltam). e o que itamar fez com o dístico do régis bonvicino “não há saídas/ só ruas viadutos avenidas”? mas também tenho tido interesse pelo gesto de entrar na canção a partir de questões de poética, como também pensar no suporte, nas expansões de suporte dos gêneros. assim como um disco de música pode ser lido como um disco de poemas (sampaio é a nossa prova), penso de forma um pouco mais literal, quando vejo o spotify atualizar a experiência de escuta de poemas (“poesia pros ouvidos” e até mesmo o programa “peixe voador” são exemplares). daí fico lembrando daqueles discos em que se tinha a gravação da leitura de determinado livro ou poeta, com seu ritmo, sua sonoridade específica, sem necessariamente estar musicado. tem de lorca a bandeira, muita coisa. tem também um projeto da anna zêpa e eveline sin, 37 graus | poesia em vinil. tudo isso é disco de poesia, né? certamente o livro maior que me é referência, depois de sampaio, é milton nascimento.
leonardo:
de alguma forma, a obra do sampaio, embora não tenha uma relação direta, parece estar próxima de alguma poesia carioca dos anos 1970, geração mimeógrafo. assim como a obra multimodal de torquato também. a relação visceral com a vida. só que nas canções de sampaio essa relação talvez seja menos solar, assim também como nas de torquato. ao montar o livro, lembramos de alguns livros em dupla ou em trio, dessa mesma geração; só, ao fim, é que traziam a ligação entre títulos dos poemas e o nome da autoria. o livro assim pode ser lido de forma direta sem a marcação imediata das assinaturas. optamos por fazer o mesmo no livro, só que com 35 autores.
qual poema/ letra do sérgio mais marcou vocês?
leonardo:
para mim cada hora tem uma canção que me pega mais. por muito tempo, foi “só para o meu coração”. hoje em dia, minha predileta é “dona maria de lourdes”. acho que está tudo nela, inclusive o presente e o futuro da poesia de que mais gosto.
jhenifer:
não tenho condições de dizer uma, então direi três, pra me sentir menos injusta. e as que mais me tocam são “pobre meu pai”, “quatro paredes” e “velho bode” (que é uma parceria com o [poeta sérgio] natureza, aliás)... adoro o humor irônico do sampaio, mas quando ele vai pro samba-canção e pro bolero, o que ele faz com esses gêneros, a dramaticidade e a poeticidade... uau, me pega demais.
recentemente rolou o lançamento do risco no disco, trabalho feito a partir de músicas feitas de poemas da ledusha. agora vocês apresentam esse projeto que é em direção diferente, poemas a partir de canções, de fonogramas. bonito demais esse trânsito cada vez mais tranquilo do livro para o som e da música para o livro. como surgiu a escolha do sérgio? e vocês pretendem fazer outras experiências assim?
leonardo:
ficou lindo o disco da ledusha que vocês fizeram. inclusive, no spotify, se não me engano, é ela quem aparece como a artista. maravilhoso. essa ideia dos poemas sem autoria imediata no livro e com apenas o nome próprio do sampaio na capa tem um pouco do movimento de atribuir aqueles poemas, num jogo, ao sampaio. mas não são poemas dele, nem poemas que ele poderia fazer, mas poemas escritos com algo da energia dele. e por isso ele também é autor. o nome dele está lá porque ele é, ao mesmo tempo, título do livro e autor fantasma do livro.
eu e jhenifer nos conhecemos por causa do sérgio sampaio. só isso já responde porque o livro é para ele. a jhenifer teve a ideia do livro de poemas para sampaio e eu achei a ideia incrível. e ela falou vamos fazer juntos. e daí fizemos. foi muito bom convidar todo o pessoal. e cada poema que chegava ia construindo o livro na nossa frente, ao vivo. bem bom.
jhenifer:
da paixão em comum que existe entre nós pelo trabalho do sampaio. e porque ele é um caso exemplar desse trânsito que a gente vem falando, ou dessa reivindicação de um gênero dentro do outro. porque é isso que ainda não tá claro pra mim e que me interessa pensar: é uma coisa que pode ser abordada como outra, ou é uma complexidade fundada na duplicidade? será por isso que a gente, leitor/ouvinte, consegue abordar esses poemas-canções de uma perspectiva e de outra? porque tenho a impressão de que a abordagem não funciona pra todo tipo de música, né? enfim, pensando alto aqui com você, quero terminar logo esse doutorado pra poder me debruçar sobre essas questões.
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bom, é isso. esse mês canto sampaio. dia 12 faço um show especial, no quintal de casa, na mantiqueira. a apresentação, na roça, é mais uma tentativa de abrir caminhos. como praticamente não consigo apresentar meu trabalho em lugares da cidade pretendo experimentar nossa própria casa (da júlia, do lírio e minha) como uma casa de show. e, em novembro, retomo "pessoal intransferível", show que faço junto com tomás bastos e gustavo cabelo há mais de dez anos cantando torquato neto (acho que será uma das últimas ocasiões para nos assistir, em plenos 80 anos do poeta).
juliano e tatá, foi bom demais rever vocês na discotecagem da juliana.
o texto tinha acabado aqui. mas como não enviei ontem à noite acordei cedo e lembrei de um vídeo do sérgio, pouco antes de morrer, cantando em uma sala ou cozinha de alguma casa em natal. o copo de cerveja ao lado, ele muito magro, cantando de um modo cru, quase sem máscara, como ninguém poderia cantar. está lá no youtube “sérgio sampaio - AO VIVO - Natal (RN)”. “vou cantar uma música que gosto muito”, ele diz, antes de entoar “hoje não” (no vídeo ele ainda canta “sua estupidez” do roberto e “lamento sertanejo”, parceria gil e dominguinhos). junto com “pra dizer adeus”, edu lobo e torquato, “hoje não”, uma das canções mais punk da chamada mpb. saca o recado:
“hoje não”: “hoje não tem nada disso/ de ser feliz por aí/ hoje eu não quero comício aqui/ dentro de mim não existo/ sinto que fui que parti/ dos meus compromissos já esqueci/ hoje não tem nem perdão/ nem pai, nem mãe, nem irmão/ nada de ser guardião dos meus/ hoje não tem solução/ e nem problemas também/ nem rico e nem pobretão/ hoje não tem violão/ não tem samba canção/ não quero nem discussão/ nem vem”
beijos,
com amor,
galo
p.s. 1. para comprar os livros da juliana entrar em contato com a própria autora.
p.s. 2. quem quiser ouvir o disco inteiro do gauche cantando sampaio o endereço é este aqui
p.s. 3. imperdível ouvir cida moreira cantando sérgio em “poeta do riso e da dor”
Muita riqueza...
Adorei saber do livro para Sampaio! Vou buscar!!
Cantei Sampaio no início desse ano, a convite do Sérgio Moreira, compositor de BH, que foi amigo dele... viveram alguns encontros incríveis mais ao fim da vida do Sampaio.
Amo!
E juntou com Torquato... aff maria...
Também canto Torquato em novembro!! Viva!!!
Um beijo grande pra você!!
Obrigada pelos textos deliciosos de se ler!