“é uma dança”. minha querida amiga ciça descreveu assim como ela dirige no trânsito em são paulo. e, reparando bem, não deixa de ser uma possibilidade, mas só mesmo a sensível ciça, num domingo de trinta graus, depois de uma noitada de show (nós dois nos apresentamos com a trupe chá de boldo no sesc pompeia na véspera dessa definição que ela me deu) e de passar a manhã no hospital para buscar seu companheiro que havia feito uma cirurgia no dedo da mão, para definir o trânsito como “uma dança”. “uma dança” foi o que ela sugeriu enquanto eu seguia no volante, me preparando, em seu HB20, para o exame prático para obtenção da carta de motorista no dia seguinte. já adianto a vocês que me leem: passei. passei raspando, em todos os sentidos, mas passei.
voltando ao domingo, quando a ciça falou “é uma dança” me surpreendi com a possibilidade de curtir dirigir, de saber entrar nesse movimento de acelerar e freiar em “coreografia” com outros automóveis. até passei a gostar da palavra embreagem. respondi à ciça na hora. a definição dada por ela parecia com a oferecida por gary snyder sobre o zen. nos vagabundos iluminados, questionado por jack kerouac, sobre o que seria o zen, japhy ryder (personagem inspirado em snyder) considera: é subir um rio pelas pedras sem reparar nas pedras. é algo assim. estou sem o livro aqui por perto. não sei porque me recordei da passagem. talvez porque não penso muito enquanto danço, somente danço, danço dançando como cantou jorge ben.
o “uma dança” surpreendente da ciça me pegou também de outro jeito na memória. durante quatro anos, na década passada, estudei um tanto da vida e obra, em especial, a da militância anarquista de john cage (aqui o endereço da tese que fiz sobre o cage, possível somente pelos tantos caminhos abertos pelo nu-sol, núcleo de sociabilidade libertária).
não sei se vocês sabem, mas, no final dos anos 1950, john cage, já um artista reconhecido, ganhou um prêmio em um programa de auditório na itália. com a recompensa, comprou uma kombi. ninguém entendeu. ele adquiriu o carro para tornar-se motorista do coreógrafo merce cunningham e seu grupo. cage, o artista renomado, responsável pelo “piano preparado” (instalou instrumentos sobre a corda do instrumento conseguindo extrair dele sons distintos) e pelo “4’33”, ocasião em que convidou uma platéia disposta a um concerto de piano a ouvir (por quatro minutos e trinta e três segundos) os sons que aconteciam a todo momento na sala de concerto e ao seu redor, afirmando que muitas vezes os sons ambientes são mais interessantes do que os chamados de “musicais”, comprou a kombi para levar a trupe do seu companheiro estrada afora. o carro, para mim, com 39, será para levar a júlia, a sua dança e o nosso filho lírio. cage faz aniversário hoje (112 de idade), dia 5 de setembro, enquanto escrevo.
dirigir não como proprietário de algo ambulante, mas sim para levar as amizades. dirigir como quem dança, dirigir para conduzir a dança, ciça e cage me aproximando do carro de maneira generosa. talvez eu esteja exagerando, como de costume, para me acostumar com essa novidade estranha até então na minha vida. pensando no cage e na ciça, na carta que vai chegar por correio, convidei as pessoas que corajosamente me emprestaram seus carros para perigosos treinos para contribuírem com uma playlist. estrearei a lista em meu primeiro passeio, quando chegar a carta, dirigindo o carro ouvindo canções sobre dirigir um carro.
a teresa escolheu, “vamos passear”, do rumo; a ciça foi de várias, mas a que mais me tocou e vai tocar no carango será a do “toca fitas” escrita por barto galeno; peri foi de “atropelamento e fuga” com skowa e a máfia; o luís escolheu “o bom”, do roberto e do erasmo carlos; a júlia foi de “papai me empresta o carro”, rita lee e “why don’t we do it in the road”, beatles; sílvia rocha sugeriu “calhambeque” e eu não podia deixar de fora sérgio sampaio com “dona maria de lourdes” e gilberto gil com “volks volkswagen blues” e adriana calcanhotto com “esquadros”.
e vocês, sugerem algo?
deixo aqui a playlist,
um beijo
fala, Galo on wheels
Ciça dança porque tem cedilha
lança na lista um "as curvas da estrada de Santos", gravação da Elis em Pleno Verão
e boas viagens pra você & sua preciosa bagagem!